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Nos sábados em que estou de plantão, a pauteira é Rosa Maria dos Santos, uma das editoras do 'Expresso Popular', jornal do mesmo grupo e que divide a Redação com 'A Tribuna'. Mas, ainda na noite de sexta-feira, ela tinha recebido uma missão do editor-chefe, Carlos Conde: pedir a um repórter para encontrar...
-- ... Esse cara aqui -- apontou Rosa, para o trecho de uma reportagem publicada naquele dia pelo 'Estadão', sobre um processo impetrado pelo Ministério Público Federal (MPF) contra quatro militares reformados acusados de torturar 20 pessoas e levar outras seis à morte no início da década de 1970, período mais cruel da ditadura militar (1964-1985).
O "cara" em questão era o tenente-coronel do Exército (da reserva) Maurício Lopes Lima. Duas coisas chamaram a atenção da chefia: Lima vive em Guarujá, Baixada Santista, área de abrangência de 'A Tribuna'; e, dos quatro réus, ele foi o único apontado como suposto torturador de uma mulher chamada Dilma Vana Rousseff Linhares. Simplesmente (e, hoje, sem o Linhares no sobrenome), a presidente da República eleita em outubro passado.
Com o 'cardápio' de sábado recebido antecipadamente, confesso que passei uma parte da noite pensando em como encontrar o cidadão. No fundo, não acreditava (e não era apenas eu o incrédulo) que, ainda mais num sábado, ia achar o homem. E para falar de uma coisa tão grave quando a acusação de ter torturado gente até a morte.
Recorri a algo que faço há anos e que, por causa de uma estudante da Universidade Santa Cecília (Unisanta), descobri só recentemente que tem nome: à RAC (Reportagem com Auxílio do Computador). Traduzindo, acessei o Guia de Assinantes da Telefônica na internet e fui ao Google. Doce ilusão.
Mas a RAC foi útil: num estalo, procurei saber se a notícia da ação do MPF estava no site do... MPF. Não só estava como havia, também, a íntegra do processo para consulta. E, ali, constava o endereço residencial de Maurício Lopes Lima. Incrível, mas não poderia ser mais fácil. Vale, até, como dica: quando quiser tentar falar com alguém que está sendo processado, veja o processo, pois o endereço é necessário para a intimação do réu.
E que certeza eu poderia ter de que o camarada iria querer falar comigo? Nessas horas, receio não conta: fui até lá com a fotógrafa Vanessa Rodrigues. Naquele sábado frio e chuvoso, chegamos ao prédio onde vive o militar, no Bairro das Astúrias, e meti o dedo no botão do interfone.
-- Sr. Maurício?
-- Sou eu.
-- Sou Rafael, do jornal 'A Tribuna'. Desculpe vir sem avisar, mas preciso conversar com o senhor.
Em dois segundos, a resposta que eu queria ouvir:
-- Ah, sim, vou atender -- e abriu o portão.
Para aliviar a ansiedade (e não sei por que a gente fica ansioso com certas coisas: os outros são tão humanos -- ou desumanos -- quanto nós), brinquei com a Vanessa: "Agora, a gente leva um tiro".
Pois, pela aparência e pelo jeito bonachão, o suposto torturador da presidente eleita Dilma Rousseff não nos daria mais do que balas de hortelã: baixinho, gordinho, careca, olhinhos vibrantes, 75 anos de idade, sozinho num apartamento em reforma. E, veja só, timido: "Fotos, não. Eu sou muito feio...".
Nem de longe estou absolvendo o homem, que mais de uma vez se contradisse, na entrevista. Frequentemente entrevisto políticos "gente boa" que não pensam duas vezes em usar dinheiro público em proveito pessoal.
Maurício Lopes Lima não negava respostas. Era um misto de ironia, escárnio, defesa do indefensável, de verdades-mentiras. Acusado de tortura, tinha CDs de Chico Buarque na estante. Terá entendido letras como 'Cálice', uma crítica velada à ditadura ("... Afasta de mim esse cálice/De vinho tinto de sangue")?
Foi mais fácil a entrevista do que a edição do material. Já estava decidido: seria a manchete. Entreguei a página pronta. Como só tinha uma linha para fazer o título e eu não podia dizer, da própria boca, que o militar torturou Dilma (posso até acreditar, porém, não tenho provas), escrevi algo meio genérico, mas que achei impactante: "Ele é acusado de torturar Dilma".
-- Não, o título é fraco. Vamos pensar noutra coisa -- determinou Dario Palhares, um dos editores-executivos do jornal e que, nos plantões em que trabalho, é o secretário de Redação. Pediu, também, para explicar melhor como surgiu e o papel da Organização Bandeirante (Oban, descrita na reportagem; clique lá e leia), para pôr em itálico os termos "terrorismo" e "terroristas", exceto no caso do terrorismo de Estado na ditadura.
Enquanto fazia os ajustes, o Dario apareceu na mesa onde eu estava, dizendo que deveríamos procurar advogados de ex-presos políticos torturados, por orientação do editor-chefe, Carlos Conde. Já eram sete da noite, e o jornal fecha mais cedo aos sábados, normalmente antes das dez. Argumentei que não dava: estava ficando tarde, eu ia precisar de mais uma página só para aquilo (um espaço que não tínhamos), e propus que se fizesse uma suíte (continuação do mesmo assunto) para a edição de segunda. Graças a Deus, aceitaram.
Ao mesmo tempo, pensava-se noutro título. "O carrasco de Dilma na ditadura" foi a opção. Mas, ao ponderar que nem mesmo a presidente eleita acusava o militar de tê-la torturado pessoalmente, mas de assistir às sessões sem ordenar que os torturadores parassem, desistiram. Ficou o que está na página.
Cheguei em casa quase às dez da noite. Às dez e meia, o Dario me ligou. Refizeram boa parte do texto, com base em declarações anteriores de Dilma à 'Folha de S. Paulo' e com descrições da tortura que sofreu enquanto esteve presa. Ele leu tudo o que reescreveram (o Conde e ele). Quando o Dario acabou e me perguntou "Tudo bem?", pus em dúvida se tudo aquilo caberia na página. Coube: a Diagramação deu um jeito. O pingue-pongue (perguntas e respostas) ficou praticamente intacto, exceto por uma dúvida que o Dario tirou comigo às onze e meia, em outro telefonema.
Gostei do resultado, a não ser por uma coisa fundamental: no texto de abertura, reescrito, tiraram um 'efe' do sobrenome de Dilma. Foi engano, acontece. Mas eu digo isso agora: no dia seguinte, às seis e meia da manhã, antes de começar a escrever a pauta, queria jogar o jornal fora. A matéria, afinal, era assinada, e o erro acabou sendo 'meu'. Certa vez, ouvi que errar o nome de alguém é como cortar fora um dedo dessa pessoa. Exagero ou não, fica chato.
No fim, o de menos. Nunca uma reportagem minha tinha repercutido tanto. Foi bastante reproduzida em sites de jornalistas renomados e em portais e blogs de esquerda. Um produtor do SBT de São Paulo me procurou para pedir o endereço do militar. Não sei se o achou.
Neste instante, enquanto o processo judicial transcorre, Maurício Lopes Lima está de volta à tranquilidade de seu anonimato e à beleza das praias que, em 1992, o fez se mudar para Guarujá. Aquilo de que lhe acusam segue impune. Não vivi aquele tempo, mas, tentando entender o que li, foi uma época de barbaridades inimagináveis.
Como é que tentam impedir a punição dos criminosos oficiais pela tortura que cometeram? A Justiça brasileira andou lendo errado a Lei da Anistia. Neste ponto, parece haver juízes mais bem alfabetizados no Chile, no Uruguai, na Argentina.
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